segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O REINO DA ESTUPIDEZ - I

A referência, no texto anterior, ao livro O Reino da Estupidez nos Caminhos da Fome - Memória de tempos difíceis, Edições Cosmos, 1996, fez-nos recordar o início de uma grande Amizade que estabelecemos, então como editor daquela importante chancela editorial, com Fernando Vieira de Sá e trouxe-nos também à memória as circunstâncias que rodearam a decisão de publicar o Prefácio de Eduardo Moradas Ferreira, entretanto falecido. Por isso, e em jeito de homenagem ao prefaciador, aqui deixamos aquele «Prefácio inacabado», antecedido da nota editorial de FVS.


«A súbita morte do querido amigo Moradas Ferreira deixou inconclusivo o prefácio que ele me havia prometido escrever para este livro, acerca do qual conhecia toda a sua arquitectura, pensamentos e objectivos, questões que, tal como a mim, o interessavam e constituíam muitas das suas preocupações humanísticas. Por isso ele se devotou com todo o seu habitual empenho a tão generosa e fraterna tarefa, logo que acordada ficou a gratificante colaboração, consubstanciada num aval de incontestável autoridade a um autor e a um texto, ambos tão carecidos de notoriedade e tão despojados de aliciadoras expectativas.
Foi a generosidade e grande amizade da Lídia, sua companheira de toda a vida, que descobrindo, entre os papéis avulsos sobre a sua mesa de trabalho, umas páginas de rascunho do que viria a ser certamente o projecto do prefácio, teve a bondade de dispensá-las se acaso pudessem ser aproveitadas.
Lido o referido esquisso, considerei-o desde logo um admirável depoimento, totalmente integrado em toda a filosofia e objectivos do livro e, como tal, logo por mim emotivamente aceite como um belo peristilo a um conteúdo imerecedor de tanto lustre, que não poderei jamais subestimar toda a carga sentimental que lhe acrescento pelo facto de se tratar da última (ou das últimas, pelo menos) mensagem que Moradas Ferreira deixou a todos nós, da qual eu tive a bem-aventurança de ser o portador assumido. Se final ou mais requinte literário faltava ainda ao escrito, ele se mostra dispensável, porque dizer mais e melhor cairia em redundância ou apenas literatismo.
Neste sentido o prefácio inacabado foi aprovado também pelos editores. [F.V.d.S.]


Neste livro o Dr. Vieira de Sá apresenta uma panorâmica da sua actividade científica e profissional em que ele revela que, de acordo com a máxima de Pulido Valente, pensou sempre como homem de acção e agiu como homem de pensamento.
Dividiu a sua actividade entre o laboratório e o campo e assim percorreu todos os Continentes, estudando com visão científica e humana a produção de alimentos, particularmente nos países em desenvolvimento.
Os seus estudos e observações abarcam quase 60 anos de intensa actividade, quase toda a duração deste século, qualificado por Eric Hobshawm como The Age of Extremes, século que viu os homens subir aos cumes de desenvolvimento técnico e científico e simultaneamente cometer os mais bárbaros, repelentes e numerosos crimes da história da humanidade.
Um século curto que o já referido Hobshawm considera iniciado com a guerra de 1914 que após uma trégua termina em 1945, e que finda com o colapso dos países socialistas da Europa em 1991.
Estamos à entrada de um novo milénio, perplexos, num mundo de violência, de fome e exclusão social.
Perplexos e buscando com angústia as vias de sobrevivência. O Dr. Vieira de Sá, que nunca confundiu crescimento económico com desenvolvimento, foi sempre uma voz corajosa, inconformada e irreverente.
Nunca o seu encerramento no laboratório o fez esquecer a vida no exterior, com todas as injustiças e sofrimentos das pessoas concretas.
Amigo de Bento Caraça, sempre perfilhou a ideia de que a cultura integral do indivíduo continua a ser um problema fulcral para o seu envolvimento harmonioso.
Em 1933 Bento Caraça referindo-se à época que então se vivia, disse: "Época singular! em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização - Einstein e Broglio - e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece".
Estas palavras continuam actuais, 60 anos decorridos, e o Dr. Vieira de Sá nunca as esqueceu ao longo da vida.
Se os trabalhos do Dr. Vieira de Sá, quer a nível de laboratório quer na sua aplicação prática, visaram sempre a melhoria qualitativa e quantitativa da produção agro-pecuária, nos seus escritos nunca esqueceu o carácter eminentemente social do seu trabalho. Nunca deixou de verberar os erros cometidos por ignorância e os mais graves por ganância, que têm conduzido ao absurdo do mundo actual - produção abundante, por vezes excessiva, de alimentos variados e de qualidade e fome e extremos de subnutrição nunca em tão grande escala sofridos pela humanidade.
Materialista convicto, Vieira de Sá nunca temeu confrontos, nunca recuou perante contratempos, nunca usou palavras tíbias ou menos claras. Sempre se manifestou desassombradamente e é surpreendente como não se nota uma quebra de entusiasmo ao analisarmos, agora em conjunto, os escritos desde a juventude até à actualidade. É uma verticalidade que nunca será de mais sublinhar.
A análise dos trabalhos publicados pelo Vieira de Sá ao longo de 50 anos mostra que o seu pensamento, embora sempre enriquecido por mais conhecimentos teóricos e uma maior experiência, sempre obedeceu a uma linha progressista de inspiração materialista (marxista). Sempre foi um pensamento de vanguarda, e, como tal, incómodo.
A história está a dar razão aos receios tantas vezes expressos nas críticas de Vieira de Sá. O ambiente não tem sido defendido, a natureza (na qual se inclui o homem) tem sido violentada e sacrificada e é cada vez mais geral a ideia que é indispensável suspender e alterar o curso actual do processo de crescimento/desenvolvimento.» [op. cit., pp. X-XII].

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