sábado, 6 de fevereiro de 2010

RECORDAR PARA NÃO ESQUECER

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Ao ler, no Diário de Notícias de 3 de Fevereiro de 2010, a coluna de João Lopes com o título «Memórias do tempo de Casablanca», um dos dez melhores filmes seleccionados para os Óscares, logo me recordei de outra célebre obra-prima cinematográfica da mesma época, O Céu Pode Esperar, [Heaven Can Wait, de Ernst Lubitsch], e que curiosamente o colunista também não resistiu a citar, entre outros. Talvez, porém, João Lopes não se recorde quanto o filme O Céu Pode Esperar sofreu nos écrans portugueses por força de uma intervenção cirúrgica que sofreu e que fazia toda a diferença para o espectador, por não se perceber a razão do título, já que o filme termina exactamente quando o figurante em causa toma o elevador, que o levaria ao Céu por decisão do Diabo. Porquê então O Céu Pode Esperar?
Nesse tempo eu estava fora de Portugal e não fugi à brotoeja cinéfila que contagiava muitas plateias. E não me arrependi, achando o título do filme de alta inspiração crítica, subtil e condescendente, apenas apontando a uma reflexão sem urgência («pode esperar»).
Com tão díspares opiniões sobre a relação título-imagem, contrariamente à coerência de ambas as críticas, só se entende recordando um detalhe, um só, pelo qual se resolve a charada.
A história começa quando o protagonista, homem bem-parecido, é recebido pelo Diabo, Senhor omnipresente do Inferno, pedindo-lhe guarida, num rasgo de auto-flagelação à luz da probidade social, ao que o anfitrião lhe responde dizendo-lhe que a coisa não era assim tão fácil como o pretendente pensava, pois exigia saber quais as razões que levaram à sua solicitação, e só então resolveria, o Diabo, se sim ou não o admitiria. «Aqui não há compadrios!» - diz o Diabo. Assim começa a história que é o corpo do filme.
Tal história, que aqui e agora se vai contar muito resumidamente, mas suficiente para se compreender o justeza da petição-grito de consciência, arrependimento de alma, agora vagabunda à procura de acolhimento que só vê lugar na fornalha do Inferno. E conta o seu rosário de culpas: ele era casado com uma mulher admirável com quem mantinha uma relação idílica de altos sentimentos, prendando-a com jóias e lembranças, todas transmitindo o calor de um lar perfeito, às quais a adorável esposa se vergava. Contudo - continuando o depoimento - fora de casa todos os obséquios de alma, com a maior frequência eram consentidos face a outras divas ao virar da esquina, a cujos corações fazia chegar a sua inegável amorosidade, sempre exemplarmente reconhecida, fazendo assim distribuir amor e mais amor em vendavais de felicidade. Por isso mesmo ele estava ali, agora presente ao reino do Inferno, pois sentia na sua consciência um remorso, face ao compromisso conjugal, que só no Inferno se redimia.
Nesta altura o Diabo, que tinha ouvido todo o depoimento desabonatório numa óptica do espartilho convencional, adverte: «Lamento, mas não posso recebê-lo, pois, contrariamente à sua convicção, o senhor é uma alma generosa, fazendo feliz não uma mas tantas mulheres, tantas quantas a sua permissividade acolhe. E, se me pede prova, vou-lhe provar a verdade das minhas palavras, mostrando-lhe no écran da minha instalação televisível, que estou ligando à Terra para assistir ao que está a passar-se no cemitério a poucas horas do seu funeral, à beira da sua campa, em que o quadro é um montão de jovens amantes, todas a carpir lágrimas de dor, encharcando lenços, incluindo a consorte, partilhando com as outras o sofrimento da morte do ente amado, ignorando rivalidades, sentindo só o que dele receberam - amor sem condições». Todas univocamente o choravam. «Lamento - conclui o Diabo - esta sua alma que me bate à porta, está equivocada quanto à sentença. O seu repouso é no Reino do Céu». E, não lhe perguntando mais nada, toca a campainha, chamando o servente, e dando-lhe ordem para conduzir aquela alma ao elevador que a levaria ao Céu, pois que era aí o lugar do seu eterno repouso.

Aqui em Portugal, o filme termina exactamente no momento em que o elevador arranca, deixando as plateias penduradas quanto ao título do filme, pois não vêem qualquer coerência com a história.
Eu, por acaso, nesse tempo estava fora do país como já referi, mas vendo o filme, que ao tempo era uma obrigação para as coisas do espírito, achei-o uma obra de arte e o seu título magistral e de grande consenso humano e crítica subtil, contrariamente ao que em Portugal se ajuizou.
A resposta a esta flagrante contradição quanto à justificação de um título de sentido oposto, estava somente neste pormenor: em Portugal, o ditador empedernido, informado do guião da história, manda que a Censura corte o final do filme, quando o elevador arranca para o Céu, eliminando a cena da sua chegada ao Paraíso Celeste, que no original era assim como observei: a chegada ao destino, e a alma penada («alma do purgatório que o povo ignorante supõe aparecer em figura humana por expiação de algum grande pecado», segundo o Dic. Morais Silva, Rio de Janeiro, 1899) preparando-se para sair, calha que nesse exacto momento entra uma diva que, essa sim, ia recovada para o Inferno, o que fez com que o recém-chegado, após uma breve hesitação, resolvesse reentrar no habitáculo donde saíra, clamando: «O CÉU PODE ESPERAR», frase que Salazar achou pecaminosa e a atitude desrespeitosa e herege. O elevador desce. A história finda.
O MAGAREFE - A amputação mutila tudo. Salazar dorme tranquilo sem escrúpulos estéticos, fabricando um aleijão sem sentimento de qualquer espécie. Há memórias e memórias. Umas de circunstância, outras as dos Povos que não se esquecem por mais lixívia que os sucessores, que os há e activos, consumam. Por isso se avalia, por este exemplo, até que ponto o povo português foi amputado de valores de toda a espécie, especialmente a dignidade, que hoje anda pela rua da amargura. Conclusão: há temas antigos que nunca perdem actualidade.

Dirigindo-me agora a João Lopes, quero felicitá-lo pelas suas intervenções, de muita classe, que eu sempre leio com prazer. Agradeço-lhe ter-me dado azo a refrescar ideias e sentimentos. Aprende-se.
Fernando Vieira de Sá
Lisboa, 6 Fevereiro de 2010

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