domingo, 4 de novembro de 2007

Miguel Urbano Rodrigues

«Ecos do México foi uma surpresa.
Esperava um livro diferente pelas referências ao tema em cartas enviadas por Fernando Vieira de Sá para Havana onde então eu residia.
E diferente porquê?
Sempre que, a partir de Cuba, eu visitava o México e escrevia sobre a história e a cultura daquele país, ele evocava em comentários impregnados de emoção momentos ali vividos. As suas cartas, extensas, tinham a estrutura de breves ensaios. Nelas o amor pelo México enquadrava um interesse incomum pela história social e uma reflexão aberta a múltiplos azimutes sobre o passado e o presente do povo de Juárez.
Mais tarde, numa das nossas longas conversas, sugeri-lhe que reunisse em livro textos e apontamentos que, condensando vivências, permitissem ao leitor português formar uma ideia da riqueza da sua experiência no México, ou, para ser mais preciso, do redescobrimento permanente da vida proporcionado pela grande aventura existencial que foram os cinco anos decisivos que ali passou ao serviço da FAO.
Em Ecos do México Vieira de Sá foi mais longe. A Obra não cabe no género memorialístico. Ele não se limitou a condensar recordações, integrando-as na sua mundividência. Sentiu a necessidade de escrever um livro em que o cenário humano do México que conheceu, há quase meio século, é iluminado por uma introdução sobre a sociedade pré-colombiana destruída pelos espanhóis e alguns capítulos dedicados à história posterior à Independência e à Revolução Maderista e aos seus desdobramentos.
O convite para alinhavar este Prefácio nasceu da paixão comum pelo México.
A atracção exercida por esse país vem da adolescência, quando me caiu nas mãos um livro sobre o cerco e a destruição de Tenochtitlán, a legendária capital asteca. O relato da defesa da cidade e do genocídio do seu povo marcaram a tal ponto a minha juventude que Cuauhtémoc, o tlatoani tenochca, o último imperador, mais tarde assassinado por ordem de Cortés, passou a ocupar um lugar cimeiro no panteão dos meus heróis favoritos.
O ajustamento do real imaginado ao real concreto somente se concretizou muitos anos depois. O encontro foi um acto de amor. Nove visitas ao México tornaram mais denso e complexo o fascínio.
Cada vez que ali volto caminho durante horas pelas salas do Museu de Antropologia cuja atmosfera encantatória me projecta no coração da história profunda das grandes civilizações da Meso América. Revisitar, ao lado da Catedral, as ruínas do Grande Templo de Tenochtitlán e perder-me na multidão que circula pela imensidão do Zocalo - a mais grandiosa Praça do Continente Americano - é outra peregrinação de ateu.
Faz poucos meses, em breve passagem pelo país, voltei a outro lugar mágico: a Teotiuhacan das pirâmides do Sol e da Lua, a Cidade dos Deuses que já era um lugar despovoado quando os astecas por ali passaram no século XIV rumo à laguna onde fundariam Tenochtitlán.
Em raros países sobe em mim como no México, em cada regresso, um impulso tão forte de acrescentar algo ao que já escrevi sobre temas que desencadearam essa necessidade de transmitir ideias e sensações que faz do escritor um escravo da palavra. Acontece e é incontrolável.
Sei que Vieira de Sá me entende. Compartilhamos a síndrome mexicana, um mal benigno, indefinível.
O leitor vai identificá-lo nos capítulos em que, evocando pessoas e momentos, tenta e consegue demonstrar que uma história trágica, moldada por uma cadeia ininterrupta de desastres, é paralelamente uma sementeira contínua de epopeias, de heróis, de talentos, de actos criadores de beleza, de rupturas revolucionárias que respondem a aspirações eternas da condição humana.
No país dos extremos - Vieira de Sá retoma a expressão - surgiu ao longo dos séculos aquela que é como totalidade, a mais bela e profunda cultura das Américas. Uma terra na qual fusões dolorosas e inacabadas, inseparáveis do genocídio, geraram um povo mestiço que não é ainda uma nação harmoniosa, mas que desponta como imagem da humanidade futura.
As mais belas páginas de Ecos do México são por isso, na minha perspectiva, precisamente aquelas em que Fernando Vieira de Sá - com o conhecimento acumulado de intelectual trota mundos e a sensibilidade do revolucionário que se mantém fiel ao seu ideário de combatente comunista - esboça um grande painel do México contraditório - uma terra prodigiosa à qual os EUA roubaram pelas armas mais de metade do seu território, um país quase inimaginável onde nasceram, lutaram ou criaram arte eterna, para bem da humanidade, seres como Chuauhtémoc, Hidalgo, Morelos, Juárez, Zapata, Pancho Villa, Lázaro Cárdenas, Juan Rulfo, Diego Rivera, Orozco e Siqueiros.
É comovedor que aos 90 anos Fernando Vieira de Sá tenha escrito um livro como Ecos do México, que, entre muitos outros, tem o mérito, raro, de obrigar o leitor a meditar sobre a grande aventura da vida.

Miguel Urbano Rodrigues
Serpa, Abril de 2005»


Miguel Urbano Rodrigues, Prefácio do livro Ecos do México - Da História e da Memória, Colecção «Percursos da Memória - 3», pp. 9-11.

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