domingo, 4 de novembro de 2007

Manuel Machado Sá Marques

«Meu bom Amigo:

Não podia perder esta oportunidade de exprimir a minha opinião sobre o seu novo livro Cartas na Mesa!
Já o tinha felicitado quando me deu a ler o manuscrito, e lembra-se como tanto insisti para que ele fosse editado?
Estas poucas páginas são assim mais uma carta para a mesa!
Como refere, estas suas «Memórias» foram despertadas pela leitura da correspondência trocada com o Professor Bento de jesus Caraça e a recordação da relação então estabelecida. Correspondem à altura da minha juventude, quando comprava os «livrinhos» da Cosmos, que tão importantes forma na minha formação. Também foi no tempo em que li pela primeira vez os seus livros sobre leite. Mas quando, no final da década de cinquenta, centrei a minha vida profissional no apoio ao doente diabético e à luta contra as chamadas «doenças da nutrição», foi imperioso o estudo de toda a sua obra, considerada pelo meu Mestre exemplar e indispensável. Mas não o conhecia «de corpo e alma». Só após o 25 de Abril, no convívio com amigos comuns, reunidos por laços afectivos e por pensamento político-social afim, passei a contar com a sua amizade, a saber quem era o Vieira de Sá e a apontar a sua vida coerente e exemplar. Juntei a sua pessoa à de meu Pai (o Professor Alberto Sá Marques), á de meu Avô (o Presidente Bernardino Machado) e à de meu Mestre (o Doutor Ernesto Roma). Os seus ensinamentos tinham toda a carga da verdadeira pedagogia - a força do exemplo.
"É indispensável ligar o passado ao futuro. As novas conquistas do pensamento não se opõem às antigas, acrescentam-nas". Este seu livro tem uma actualidade dialéctica e espero que seja lido como um compêndio de civismo, pois o seu conteúdo é revolucionário e humanista. Aprendemos como e porque surgem as dificuldades a quem deseja uma racionalização da produção e distribuição em toda a actividade do homem. Lê-se com optimismo porque aposta nas nossas verdadeiras qualidades, nas virtudes do povo português. As cartas na mesa são do jogo de sempre. O que acontece é os baralhos terem diferentes desenhos dos reis, dos valetes, das damas, das espadas, e tantas vezes cartas viciadas... O jogo continua a ser o mesmo, a luta do homem pela sua libertação, contra a opressão e exploração pelo seu semelhante. Com cerca de noventa anos ainda é um jovem que fala em "tornar possível o impossível". E consegue-o!
Lembra nas suas memórias a figura de Bernardino Machado, e sabe a veneração que tenho por meu Avô! É um "grande vulto da República" que ainda hoje afronta muita gente reaccionária ou ignorante! Conheceu-o pessoalmente em Mantelães, logo após o seu regresso do exílio, tinha então oitenta e nove anos. Também tive a sorte de poder conviver com meu Avô em Mantelães e depois na Senhora da Hora, durante as férias grandes dos anos de 1940 a 1943.
Sabe que não fiquei a conhecer o Minho de forma a poder descrevê-lo como o Vieira de Sá consegue fazer em tão poucas palavras, nem fui calcorrear alguns dos lugares históricos do Porto, que meu Avô aconselhava a visitar? Ficava antes preso a ouvi-lo, não querendo perder as suas constantes e pedagógicas lições, com discussões acesas e vivas, como ele tanto gostava. Era bem como o descreve, uma pessoa atraente e inesquecível. sabe, Vieira de Sá, também quando vou a sua casa por uns minutos, acabo por ficar horas!
Na introdução ao livro Os Derivados do Leite na Alimentação e na Indústria, José Maria Rosell escreveu que o Vieira de Sá "conseguiu realizar uma obra que constitui uma utilíssima contribuição para o reconhecimento público do valor da produção e consumo dos lacticínios, na saúde e na economia dos povos". Mas a sua vida, o seu pensamento e a sua acção, ultrapassam o campo da actividade profissional, como se prova com a leitura deste livro. Esta verdade ficará ainda mais marcada quando possuirmos os outros dois volumes de memórias que felizmente virão a lume dentro em breve.

Meu caro e bom Vieira de Sá, aceite um apertado e cordial abraço deste seu

Manuel Machado Sá Marques
Lisboa, 10 de Dezembro de 2003»

Manuel Machado Sá Marques, Prefácio do livro Cartas na Mesa - Recordando Bento de Jesus Caraça e a «Biblioteca Cosmos», Colecção «Percursos da Memória - 1», pp. 9-11.

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